O CONTROLE PRIVADO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Por Pablo Cerdeira
10/02/2020

Em um dia movimentado no shopping mais importante da cidade, João começa a se manifestar, expondo sua opinião a respeito de um político. Acusa-o disso e daquilo. É ano eleitoral e João entende que as pessoas devem saber mais sobre aquele candidato. Os seguranças, notando o fato, se apressam em correr até João, que é prontamente imobilizado e amordaçado. O shopping justifica sua ação: teme ser responsabilizado no judiciário por eventuais danos à imagem do candidato.

O caso é hipotético e, em uma sociedade democrática na qual a liberdade de expressão exerce papel fundamental, seria considerado uma aberração. Mas é isso que pode acontecer com sites, blogs e redes sociais, a depender do entendimento do Supremo sobre a constitucionalidade ou não do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

O julgamento começou ano passado, mas deve ser concluído agora em 2020, um ano especialmente importante para a liberdade de expressão em razão das eleições municipais. O Supremo deverá decidir qual o procedimento para a remoção de conteúdo da internet. O Marco Civil, lei aprovada com grande apoio da sociedade, estabelece que as empresas que fornecem serviços de hospedagem, de blogs e redes sociais só se tornam responsáveis civilmente pelo conteúdo postado pelos usuários se, após ordem judicial, a decisão de remoção não for cumprida. A alternativa – no caso de se declarar inconstitucional o art. 19 do Marco Civil – é responsabilizar imediatamente as empresas, independentemente de ordem judicial, bastando uma notificação. Nos debates jurídicos isso se chama “notice and take down”, ou “notificação e remoção”.

Em um mundo ideal, formado apenas por pessoas bem-intencionadas e sem áreas cinzentas sobre a ocorrência de danos à imagem em contraposição à liberdade de expressão e ao direito à informação, a opção pela remoção de conteúdo sem intervenção judicial parece a mais adequada. É mais rápida, menos burocrática e mais funcional. Mas o mundo real não é assim.

Responsabilizar as empresas que oferecem hospedagem de sites, de blogs e as redes sociais, independente de ordem judicial, significa, em outras palavras, a delegação do chamado “poder de polícia” para atores privados. Quem decidirá se algo pode ou não ser dito serão essas empresas.

E há dois caminhos possíveis: em um, as empresas removerão todos os conteúdos que forem notificados para evitar multas e outras penas. Em outro cenário, seu departamento jurídico irá avaliar o conteúdo notificado e decidirá se ele deve ser removido ou não.

Os dois cenários são altamente danosos para a sociedade e para a liberdade de expressão. Se as empresas optarem por remover tudo o que for notificado, aqueles com maior poder econômico para contratar serviços de monitoramento da internet e serviços jurídicos para envio de notificações em massa conseguirão silenciar a internet – e a sociedade, por tabela. Se as empresas adotarem o segundo caminho – avaliar caso a caso – estarão elas assumindo o papel de controlar o que a sociedade pode ou não falar e o que pode ou não saber.

Em qualquer dos cenários, se o Supremo entender que a remoção de conteúdo não exige ordem de um terceiro independente – do Judiciário –, teremos a delegação de um poder exclusivo do Estado para particulares.

A liberdade de expressão, ainda que abusada em alguns momentos, é a condição sem a qual o próprio direito à informação – direito da sociedade – não subsiste. Delegar ao privado – que sempre é ator interessado – o direito de decidir sobre a remoção de conteúdo da internet é o mesmo que delegar também a ele o direito à informação de toda a sociedade.

Como alertado acima, o ano de 2020 será muito importante em razão de eleições municipais, quando se espera um grande número de denúncias de notícias falsas, calúnias e difamações. Será trabalhoso para o Judiciário avaliar o que deve ou não ser removido em tempo hábil para que não impacte as eleições. Se isso acontecer, o país tem que comemorar, porque o controle sobre o que está sendo removido ou não será transparente, independente e fundamentado. Mas isso só ocorrerá se o artigo 19 do Marco Civil for considerado constitucional pelo Supremo.

No caso de o artigo 19 ser declarado inconstitucional, esse controle ficará a cargo das empresas de hospedagem, de blogs e de redes sociais. Não é preciso lembrar que elas, até mesmo em razão da proteção da concorrência, não precisam ser transparentes, independentes e nem fundamentar suas decisões.

Pablo Cerdeira é advogado, criador do Supremo em Números e consultor do PCPC Advogados.