ATÉ QUANDO HAVERÁ DIVERGÊNCIA SOBRE O COMEÇO DO PRAZO PARA AÇÃO RESCISÓRIA?

Por Leonardo de Faria Schenk
19/12/2019

O sistema processual sempre conviveu com a formação gradual da coisa julgada. Basta pensar na cumulação de pedidos e na limitação voluntária do efeito devolutivo da apelação a um deles. 

O Código de Processo Civil de 2015 reforçou essa possibilidade com a previsão expressa, no artigo 356, do julgamento antecipado parcial do mérito de um dos pedidos cumulados ou da sua parcela incontroversa. Aqui a decisão de mérito, porque parcial, será interlocutória e o agravo de instrumento será o recurso cabível.

A questão que se coloca, no limite do presente artigo, diz respeito à formação da coisa julgada com relação a cada um dos capítulos decisórios autônomos e ao início do prazo para o ajuizamento da ação rescisória. 

Ao tempo do CPC anterior, o Superior Tribunal de Justiça havia consolidado o entendimento de que o “prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial” (Súmula nº 401). 

Sustentava a Súmula nº 401 do STJ, dentre outras, a decisão da Corte Especial no sentido de que, se a ação é una e indivisível, não haveria que se falar em fracionamento da sentença ou acórdão, o que afastaria a possibilidade do seu trânsito em julgado parcial e, com isso, a existência de múltiplos prazos para o ajuizamento de ação rescisória (Embargos de Divergência nº 404.777/DF, julgado em 03/12/2003).

Acontece que o Supremo Tribunal Federal possui entendimento diverso, no sentido de que a formação gradual da coisa julgada enseja a impugnação também gradual dos capítulos decisórios autônomos por meio de múltiplas ações rescisórias, quando cabíveis. 

O Tribunal Pleno já decidiu que os “capítulos autônomos do pronunciamento judicial precluem no que não atacados por meio de recurso, surgindo, ante o fenômeno, o termo inicial do biênio decadencial para a propositura da rescisória” (Agravo de Instrumento nº 654.291, com agravos regimentais, julgado em 18/12/2015).

Pouco antes, a 1ª Turma do STF havia reformado o acórdão proferido pela Corte Especial do STJ nos embargos de divergência citado acima e afirmado que o termo inicial do prazo para a propositura da ação rescisória seria a preclusão máxima de cada capítulo decisório autônomo não impugnado (Recurso Extraordinário nº 666.589, julgado em 25/3/2014).

Como se vê, há divergência sobre o tema entre os tribunais superiores. O dever de uniformização da jurisprudência imposto pelo legislador aos tribunais, com a manutenção da sua estabilidade, integridade e coerência (art. 926, CPC de 2015), não se coaduna com essa realidade. 

Saber, na atualidade, qual é a orientação que tende a prevalecer depende do reconhecimento ou não da estatura constitucional da coisa julgada e da sua formação gradual, por consequência. Se a matéria for infraconstitucional, caberá ao STJ a interpretação última da legislação federal relacionada ao tema. Por outro lado, se for constitucional a matéria, a última palavra caberá ao STF. 

Na minha visão a coisa julgada possui estatura constitucional inequívoca. 

As garantias fundamentais do processo, em seu núcleo fundamental, constituem verdadeiro escudo do cidadão frente ao exercício arbitrário da força pelo Estado. Não é diferente com a coisa julgada, que em seu efeito negativo impede, justamente, que o Estado possa decidir novamente as questões de direito material já decididas em um processo em que as partes tiveram ampla possibilidade de participação e influência na formação da convicção do julgador, direitos a elas assegurados pela garantia do contraditório. 

No último mês uma importante sinalização sobre os rumos dessa divergência adveio de julgamento da 1ª Turma do STF (Reclamação nº 26874, com agravo regimental, julgada em 12/11/2019).

Reafirmando a sua jurisprudência, o colegiado confirmou decisão monocrática que havia julgado a reclamação procedente para determinar o trânsito de recurso extraordinário que tratava do tema da formação gradual da coisa julgada e que havia, na origem, tido o processamento negado pela Presidência do STJ por força da aplicação do Tema 660 da jurisprudência com repercussão geral do STF. 

No caso, o debate se formou exatamente em torno do termo inicial do prazo para o ajuizamento de ação rescisória diante da formação gradual da coisa julgada e mereceu a aplicação, pelo STJ, do entendimento consolidado na sua Súmula nº 401. 

Para acolher a reclamação, a 1ª Turma do STF reconheceu a envergadura constitucional da coisa julgada, corolário da segurança jurídica, valor fundamental para o Estado Democrático de Direito, nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio, relator. 

Em voto-vista, o Ministro Luiz Fux esclareceu: 

Observe-se que a questão de fundo não se refere exclusivamente ao momento do trânsito em julgado, senão à própria garantia constitucional da coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, CF/88). O selo de imutabilidade, que recobre a situação jurídico-substancial das partes, não é, pois, uma questão submetida à discricionariedade legislativa de forma desvinculada dos imperativos constitucionais. Conforma aponta a doutrina, a coisa julgada é uma garantia ofertada constitucionalmente aos jurisdicionados, o que revela o seu fundamento político, notadamente pelo fato de dizer respeito com a estabilidade das decisões de mérito, o prestígio da função jurisdicional do Estado e a pacificação dos conflitos.

Reconhecida a estatura constitucional da coisa julgada, a tendência é de que o STF, mais cedo ou mais tarde, reconheça a repercussão geral do tema e, reafirmando a sua jurisprudência, decida que a formação gradual da coisa julgada acarreta, com relação a cada capítulo decisório autônomo, a abertura do prazo decadencial para o ajuizamento da ação rescisória.

É oportuno recordar a manifestação do Ministro Luís Roberto Barroso ao votar no recurso extraordinário nº 666.589, acima referido: 

E a verdade é que, refletindo sobre esta questão, cheguei à conclusão que não estamos aqui discutindo prazo decadencial de ajuizamento da ação rescisória – ponto. Quer dizer, temos aqui uma questão conceitual mais importante que diz respeito à precisa caracterização do que seja exatamente a coisa julgada, notadamente em hipóteses nas quais a decisão possa ser logicamente fragmentada em capítulos. E, aí, a questão da conceituação da coisa julgada transcende a questão do mero prazo de propositura da ação rescisória, o que me leva à convicção de que a presente questão tem uma dimensão constitucional, como de certa forma revela o único caminho possível para se dirimir a dissensão que hoje existe, por exemplo, entre o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho.

De modo que, se nós já estivéssemos, neste caso, sob a égide da repercussão geral, eu até acharia que esta seria uma hipótese típica de reconhecimento de repercussão geral pela implicação relevante que tem para a jurisdição no País, de uma maneira geral, inclusive para a jurisdição prestada por Justiças diferentes. 

Superada a questão da possibilidade de conhecimento da matéria, porque a considero constitucional, acho que não teria dúvida em acolher a tese de que a decisão do Superior Tribunal de Justiça merece reforma. 

A consequência da reafirmação da jurisprudência do STF será a forçosa revisão da Súmula nº 401 do STJ. 

Com isso, a melhor interpretação do artigo 975 do CPC de 2015 é no sentido de que o prazo para o ajuizamento da ação rescisória deve ser contado do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo com relação a cada capítulo autônomo. 

Aos interessados, cabe manter atenção à evolução dos debates. Aos prejudicados, cabe a legítima e intransigente defesa dos seus direitos.

Leonardo Faria Schenk
Advogado. Professor Adjunto de Processo Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sócio do Escritório PCPC – Paulo Cezar Pinheiro Carneiro Advogados Associados